Dor Antiga E Invulnerabilidade Morta

Vídeo: Dor Antiga E Invulnerabilidade Morta

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Vídeo: Sepulte suas dores | Deive Leonardo 2024, Abril
Dor Antiga E Invulnerabilidade Morta
Dor Antiga E Invulnerabilidade Morta
Anonim

Uma criança que conheço tem um pote de bolas de borracha. Essas bolinhas coloridas que custam um centavo e são vendidas em máquinas engraçadas que passam aqui e ali no caminho dos shoppings. Uma lata cheia de bolinhas quicando, como se tremesse de impaciência e quisesse pular o quanto antes e começar a pular pela sala.

Meu amigo, uma criança, pegou bolas na clínica, onde costumava visitar e onde também havia uma dessas máquinas automáticas. A mãe da criança sempre comprava uma bola para ele, acreditando que isso de alguma forma o distrairia da dor que ele teve que suportar na sala de tratamento, onde uma tia grande de jaleco branco aplicou injeções nele.

O filho do meu amigo não gostava muito de injeções. Reto MUITO. E quem os ama?

E agora, estando no sofá e colocando um lugar macio sob a agulha afiada de uma seringa, a criança apertou uma bola multicolorida em seu punho e olhou para ela com toda a força, como se quisesse discernir as moléculas de borracha que ela consiste em. Isso ajudou a criança a superar a dor.

No entanto, ele não jogou com bolas. Acabei de colocá-los em um grande frasco transparente e nunca mais os toquei.

Me interessei e perguntei:

- Porque isto é assim?

Em resposta, a criança franziu os lábios e disse:

- É que todos eles escureceram de minha tristeza e eu não quero mais tocá-los.

- Escurecido? - Fiquei surpreso, olhando as bolas coloridas e brilhantes.

Para mim, todos eram igualmente brilhantes e coloridos.

- Tudo tudo !? - perguntei com cuidado.

“Existem vários”, ele admitiu, decidindo ser objetivo. “Eles me compraram enquanto caminhava para um parque de diversões ou circo. São muito brilhantes e bonitos, mas é impossível chegar até eles, estão no fundo da lata e para pegá-los é preciso entrar em contato com bolas escuras, das quais ainda cheira a hospital.

- Por que você os mantém?

“Não posso simplesmente jogá-los fora … Afinal, eles estavam comigo quando eu estava com dor. Jogá-los fora é como se separar de um pedaço de si mesmo …

“Sim,” eu concordei. - Você não pode jogá-los fora.

Ficamos em silêncio, refletindo sobre essa difícil tarefa.

- Talvez se você os liberar, eles possam restaurar seu brilho? - Eu sugeri.

“Estou com medo”, admitiu a criança. - E se eu não aguentar a tristeza deles?

Havia muita amargura penetrante em suas palavras e foi difícil para mim conter minha tristeza. Era uma vez em mim, como neste frasco transparente, muitas lembranças sombrias e envenenadas pela dor.

- Vamos liberá-los um de cada vez. Eu sugeri suavemente. - Eu estarei contigo.

- vamos. A criança respondeu decididamente e pegou minha mão.

Quando lançamos a primeira bola, depois a segunda e a terceira, ele chorou, mas quando viu que as bolas estavam aos poucos recuperando sua habilidade natural de salto, elas saltavam no chão e ricocheteavam nas paredes, brilhando com as laterais coloridas, a princípio devagar e timidamente, e então com mais e mais confiança, ele sorriu …

- Acontece que a tristeza nunca é infinita! - ele discretamente compartilhou sua descoberta comigo.

- Sim você está certo. - respondi maravilhado com sua profunda sabedoria.

Esta criança que conheço tinha 24 anos. Mas o que importa se dentro de cada um de nós vive uma parte frágil e vulnerável, originária da infância. E cada um de nós tem lembranças cheias de dor e tristeza. E até que deixemos essa tristeza aparecer, é difícil para nós ver o lado alegre e alegre de nossa vida.

A tristeza reprimida pode e nos torna fortes e resistentes aos olhos dos outros (e aos nossos). Porém, junto com essa máscara de invulnerabilidade, adquirimos uma armadura dura, dentro da qual é fria, úmida e escura e por cuja orla é impossível alcançar uma tenra folha de grama, cheirar a manhã, sentir o que é a vida. Através dessa armadura, a luz do sol e o sorriso amoroso de alguém não podem chegar até nós. Essa solidão calma e morta vale a invulnerabilidade, o preço que pagamos por ela?

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